A Conae como mecanismo de defesa da educação como direito humano
11 de setembro de 2024 - 08:52
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O direito à educação é central nos direitos humanos, conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (artigo 26º). Este documento é fundamental, definindo direitos universais e princípios a serem aprofundados ao longo do tempo (Bobbio, 1992; Fischmann, 2009). A educação é um direito social, econômico e cultural, crucial para o desenvolvimento do indivíduo e sua participação na sociedade, sendo um direito síntese dos demais (Claude, 2005, p. 37).
Incorporado como um direito de segunda geração, a educação reflete as consequências materiais para a sociedade, conforme a evolução dos direitos humanos da ONU em três gerações: direitos políticos, econômicos e culturais, e direitos coletivos dos povos (Jones e Coleman, 2005). A Declaração determinou que a educação não seria neutra em termos de valores, visando combater regimes autoritários (Claude, 2005).
O direito à educação foi aprofundado pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) de 1966 (artigos 13º e 14º). O PIDESC reforça a Declaração Universal dos Direitos Humanos, destacando a educação primária obrigatória, sua universalização, a gratuidade e acessibilidade da educação, a educação de jovens e adultos, e a necessidade de uma rede de ensino com infraestrutura adequada e qualidade mínima nas escolas. A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990 expande esse direito, enfatizando a igualdade de condições, frequência escolar, combate à evasão, e objetivos como o desenvolvimento psicológico, mental e físico, e o respeito às identidades culturais, de origem, de gênero, de etnia, de religião e ao meio ambiente (artigos 28 e 29).
Katarina Tomaševski, primeira relatora da ONU para o direito à educação, propôs em 2002 o esquema das 4-A: availability (disponibilidade), accessibility (acessibilidade), acceptability (aceitabilidade) e adaptability (adaptabilidade) para estruturar as obrigações governamentais em relação à educação, materializando o arcabouço legal internacional na temática. Este esquema fundamentou diversas resoluções internacionais, leis nacionais, pesquisas e políticas educacionais globalmente, adaptando-se aos contextos sociais, políticos e econômicos específicos.
Katarina Tomaševski destaca que a educação globalmente envolve mais pessoas do que qualquer outra atividade institucionalizada, resultando em uma ênfase excessiva no “hardware” em detrimento do “software”. Isso significa um desequilíbrio entre a estrutura formal e o conteúdo da educação e os processos de ensino-aprendizagem.
Tomaševski alerta que tal abordagem questiona os direitos de professores e alunos, sugerindo que professores são apenas um fator na produção de capital humano e que as crianças são propriedade de seus pais (E/CN.4/2002/60). Robeyns (2006) compara três modelos de educação: o baseado em direitos humanos, o de capital humano, e um modelo intermediário, o de capacidades. Este último tenta suavizar a abordagem do capital humano, enfatizando a educação como um direito (Cara, 2019).
Robeyns define que a teoria do capital humano vê a educação como um investimento na produtividade do trabalhador (Robeyns, 2006). Contudo, aponta três problemas: (1) considera apenas benefícios econômicos, ignorando cultura, gênero, identidade e emoções; (2) é instrumental, valorizando a educação apenas pela produtividade econômica; e (3) promove a comparação com outros investimentos, ignorando a importância intrínseca da educação (Robeyns, 2006).
Resnik (2006) observa que, apesar das críticas, a visão econométrica da educação foi adotada por organizações internacionais como a Unesco e a OCDE. Essas organizações difundem essa visão globalmente, contribuindo para uma cultura educacional global. A privatização da educação é criticada por impedir a educação gratuita para todos, introduzindo taxas que tornam os melhores programas acessíveis apenas aos mais ricos, contrariando os princípios de disponibilidade e não discriminação (Devidal, 2009).
A teoria baseada em direitos defende que todo ser humano tem direito à educação de qualidade, independentemente do retorno em termos de capital humano. Segundo Tomaševski (2003, p. 33, tradução nossa), “a educação deve preparar os alunos para a paternidade [/maternidade] e participação política, deve aumentar a coesão social e, acima de tudo, ensinar aos jovens que todos os seres humanos – eles próprios inclusos – têm direitos”. Portanto, a educação é vista como um direito fundamental que deve ser garantido a todas as pessoas.
Robeyns (2006, p. 75) analisa que conceber a educação como um direito é o oposto de vê-la como capital humano, enfatizando a justiça dos direitos em vez da eficiência econômica. Devidal (2009, p. 29) argumenta que a educação contribui para a construção nacional, preservação do conhecimento, transmissão de cultura e é um pré-requisito para uma democracia vibrante. Ele também destaca que muitos profissionais e movimentos de estudantes denunciam a comercialização da educação, afirmando que “a educação é um direito, não uma mercadoria” (Fórum Social Europeu, 2002).
Esta disputa conceitual é marcada de um lado pelos defensores das agendas privatizantes, liberalizantes e de capital humano, como descrito por Mounk (2018) como o “playground de bilionários”, e de outro por professores, estudantes e organizações da sociedade civil que se opõem a essa perspectiva. Essas divergências são cruciais ao analisarmos as disputas em torno do Plano Nacional de Educação no Brasil.
Diversos países têm experienciado um aumento da privatização nas reformas educacionais, com a América Latina liderando em participação educacional privada e crescimento nas últimas décadas (UNESCO-UIS, 2016 apud Moschetti, Fontdevila e Verger, 2019). Além da expansão da oferta de educação privada, a região enfrenta processos complexos, tanto internos quanto externos, que afetam desde a oferta educacional até a formulação e implementação de políticas, especialmente na era da ‘nova gestão pública’ (Ball, 2009; Ball & Yudell, 2008; Coupland, Currie & Boyett, 2008).
Moschetti, Fontdevila e Verger (2019) analisaram esses processos entre 1990 e 2016, categorizando os caminhos de avanço da privatização educacional na América Latina. No Brasil, a privatização avançou até 2016 de forma incremental, com a adoção de uma ‘nova gestão pública’ e a concepção da educação como serviço, agravando as desigualdades territoriais. Os autores observam que a resistência da sociedade civil a privatizações mais estruturais resultou em reformas mais moderadas, dificultadas pela descentralização do país.
A partir de 2016, contudo, com o aumento da participação de atores filantrópicos na formulação e execução de políticas educacionais, o Brasil passou a integrar a categoria de privatização como parte da reforma estrutural do Estado (Pellanda & Cara, 2020). Este período viu o enfraquecimento sistemático dos espaços formais de participação da sociedade civil (Da Silva, De Sousa & De Pinho Araújo, 2018), como o Fórum Nacional de Educação e a Conferência Nacional de Educação, mecanismos de participação na construção e monitoramento do PNE, e a formação de recursos humanos filantrópicos para atuar na administração pública nos níveis federal, estadual e municipal.
Em 2014, o Brasil aprovou o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei 13.005/2014). No entanto, após o impeachment de Dilma Rousseff e a posse de Michel Temer, políticas de austeridade e desinvestimentos nas áreas sociais foram implementadas, afetando a educação (Cara e Pellanda, 2018; Da Silva; De Sousa; De Pinho Araújo, 2018).
Em 2017, o Fórum Nacional de Educação foi reformulado, enfraquecendo a participação da sociedade civil e favorecendo interesses de mercado (Da Silva; De Sousa; De Pinho Araújo, 2018). O governo Temer, apoiado por instituições filantrópicas, implementou a Base Nacional Comum Curricular e a reforma do Ensino Médio, desviando-se das metas do Plano Nacional de Educação (Avelar, 2018; Cássio; Goulart; Ximenes, 2018). Essas ações resultaram na centralização do controle da educação nas mãos da nova filantropia, excluindo movimentos e sindicatos educacionais e priorizando uma lógica de mercado (Avelar, 2018). Tais agendas foram mantidas ao longo do governo Bolsonaro (2018-2022) – que, além disso, também aprofundou ataques ultraconservadores, como a militarização de escolas, a agenda da educação domiciliar, os ataques do agronegócio e do movimento Escola Sem Partido à educação – e voltam a ser questionadas com a ascensão de Lula à presidência, em 2023.
Com a recomposição, por meio da Portaria MEC 478, de 17 de março 2023, do Fórum Nacional de Educação na estrutura anterior ao desmonte promovido por Temer em 2017, volta a tomar espaço no debate formal ao redor do PNE, a força política em defesa do direito à educação. Dessa forma, por meio do Decreto 11.697, de 11 de setembro de 2023, foi convocada a Conferência Nacional de Educação de 2024, com a sua etapa nacional ocorrendo no final de janeiro deste ano.
Ao analisarmos o texto final da Conferência, especialmente concentrado no Eixo II, é possível verificar a conceituação de defesa de direito à educação que o campo educacional de defesa de direitos trouxe de volta ao cenário político pós-reformas recentes, em um cenário de disputa política por este modelo educacional.
Dessa forma, este artigo pretende verificar, à luz do arcabouço legal internacional materializado no sistema de 4A de Tomasevski, quais elementos foram acrescentados e enfatizados na Conae 2024 em relação ao documento final da Conae 2014 (anterior ao período de agenda de retrocessos, com vetor tendendo à teoria de capital humano) e da própria Lei 13.005/2014, do Plano Nacional de Educação 2014-2024.
Análise comparada do PNE 2014-2024, da Conae 2014 e da Conae 2024 à luz do sistema de 4A de Katarina Tomasevski
A seguir, trazemos quadro comparativo do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, do Documento Final da Conferência Nacional de Educação (Conae) 2014 e do Documento Final da Conae 2024 à luz do sistema de 4A de Katarina Tomasevski para os conceitos e diretrizes que compõem o direito à educação. Essa comparação detalha de que forma os documentos e conferências brasileiras sobre educação aqui analisados abordam os princípios fundamentais do direito à educação, alinhando-se com os conceitos de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e adaptabilidade propostos por Katarina Tomasevski.
Incluem-se a defesa do caráter público da educação; princípios de igualdade, inclusão, equidade, pluralidade e diversidade; a garantia de universalidade, acesso e permanência, além da obrigatoriedade do ensino de 12 anos. Aspectos como o processo de ensino-aprendizagem; gestão democrática, cooperação e colaboração; laicidade; qualidade socialmente referenciada; alfabetização, aprendizagem, desenvolvimento pleno e sucesso escolar; regulação, monitoramento e avaliação são essenciais. Adicionalmente, enfatiza-se o compromisso com o desenvolvimento socioambiental sustentável, justiça social, ciência, tecnologia e inovação; fortalecimento da democracia e cidadania; e uma abordagem integral da educação.
Os principais achados da análise comparada apontam para uma inferência de que o texto da Conae 2024, especialmente no trecho de conceituação e diretrizes, em seu Eixo II, reafirma de maneira explícita a retomada da agenda do direito à educação frente às agendas de redução do papel do Estado e aos ataques que visam restringir direitos humanos fundamentais dos últimos anos. Ainda, garante todos os elementos do sistema de 4A de Tomasevski.
O Documento Final da Conae 2024 aprofunda e enfatiza, em relação ao Documento Final da Conae 2014 e a Lei 13.005/2014, que a educação é um direito público subjetivo que eleva os indivíduos à condição de sujeitos de direito e beneficia toda a comunidade, sendo um bem público não-excludente e não-rival. O texto reafirma, ainda, vigorosamente, a agenda do direito à educação, posicionando-a como um pilar fundamental para o acesso aos demais direitos e para o desenvolvimento socioambiental sustentável e a justiça social. Em contraposição às agendas neoliberais que visam reduzir o papel do Estado na educação e aos ataques aos direitos humanos, a Conae 2024 destaca a educação como um bem público essencial, que beneficia toda a sociedade.
Contra qualquer forma de desqualificação da educação, como a financeirização, privatização e terceirização para a iniciativa privada em todos os níveis, etapas e modalidades educacionais, o texto defende a inclusão de princípios como universalidade, gratuidade, obrigatoriedade, acessibilidade, laicidade, inclusão, equidade, pluralidade, diversidade, permanência, qualidade social, gestão democrática, e uma educação verdadeiramente inclusiva.
Contra uma agenda estritamente baseada em resultados em larga escala e de aceleração do processo de ensino-aprendizagem, destaca que a universalização do acesso é central, garantindo que todos, sem discriminação, tenham direito à educação de qualidade, e a gestão democrática é valorizada como um princípio pedagógico-administrativo que fortalece a democracia dentro das instituições educativas. A educação é entendida como um processo dialógico e democrático, onde ensinar e aprender são indissociáveis, promovendo um aprendizado existencial da democracia. Além disso, o texto destaca a importância das condições estruturais para a oferta educacional, sustentando a qualidade socialmente referenciada por meio do Custo Aluno Qualidade (CAQ), pontuando que este não padroniza as instituições, mas garante direitos básicos fundamentais. Esses princípios visam assegurar a alfabetização, aprendizagem, desenvolvimento pleno, elevação da escolaridade e sucesso escolar para todos os indivíduos, independentemente de suas diferenças e ritmos de aprendizagem.
Uma das questões centrais, urgentes e novas nesse contexto da Conae 2024 é a regulação do ensino privado e comunitário, ainda muito incipiente no Brasil, que precisa ser expandida de maneira estrutural. Isso inclui a incorporação dos Princípios de Abidjan (2018) e demais proposições nacionais e internacionais, com base nos subsídios do grupo de trabalho temporário (GTT) do Fórum Nacional de Educação (FNE) responsável pelo tema. Essa expansão visa orientar sobre as obrigações dos estados em garantir educação pública de qualidade e regular a participação dos setores privado e comunitário na educação, alinhando-se com os princípios de Direitos Humanos.
A Conferência de 2024 enfatiza a necessidade de fortalecer a educação integrada à ciência, tecnologia e inovação, garantindo acesso universal, regulando o uso de dados e promovendo formação crítica. Destaca-se também a importância de programas de educação crítica da mídia, especialmente para grupos em situação de vulnerabilidade, e o desenvolvimento de recursos educacionais abertos (REA) como instrumentos democráticos de acesso ao conhecimento.
Além disso, a Conae 2024 se posiciona contra políticas ultraconservadoras, defendendo a desmilitarização das escolas, o combate ao homeschooling, as intervenções do movimento Escola Sem Partido e quaisquer tentativas de cercear a liberdade de cátedra e o livre pensamento nas instituições educacionais. Reitera a importância da educação integral, que não se limita ao ensino formal, mas engloba aspectos como cidadania, ética, diversidade cultural e regional, saúde, esportes e cultura, promovendo a formação integral dos indivíduos e sua preparação para a vida em sociedade conforme preconizado pela Constituição Federal de 1988.
Considerações finais
Ao analisar o Documento Final da Conae 2024, observa-se uma resposta do campo do direito à educação – alinhado ao sistema do direito internacional de 4A de Tomasevski – aos processos de reformas que enxugaram o papel do Estado e que fizeram tender o modelo de educação adotado no país para o de capital humano, com privatizações via desastres – como a pandemia e o impulsionamento das tecnologias privadas na educação (Moschetti, Fontdevila e Verger, 2019) -; assim como aos processos de ataques aos direitos humanos e à democracia, como nas agendas de militarização das escolas, educação domiciliar, censuras à liberdade de cátedra por fundamentalismos religiosos, entre outras.
A análise comparada aponta não só para um processo cumulativo, com a retomada de conceitos já solidificados em 2014, como para avanços, sobretudo em relação ao fortalecimento da agenda da educação como direito; à defesa da educação como bem público e da separação mais nítida entre o público e o privado, com indução de processos de regulação; ao seu posicionamento como um pilar fundamental não somente para o acesso aos demais direitos e como para o desenvolvimento socioambiental sustentável e a justiça social; à indissociabilidade entre ensino e aprendizagem e ao não deslocamento para a agenda estrita da aprendizagem, garantindo foco em acesso, permanência e qualidade também; e ao uso de tecnologias pautado no conceito de recursos abertos e de conectividade significativa. Por fim, enfatiza os princípios da universalidade, gratuidade, obrigatoriedade, acessibilidade, laicidade, inclusão, equidade, pluralidade, diversidade, permanência, qualidade social, gestão democrática, e uma educação verdadeiramente inclusiva.
Edwards Jr. e Means (2019) apontam para a necessidade de se pensar para além das linhas que conformam o sistema e a conjuntura hoje, olhando para 1) um modelo econômico diferente e mais ambientalmente sustentável; e para 2) uma noção diferente da divisão entre o que é público e o que é privado, como nos organizarmos democraticamente e como nos engajar ou transformar o Estado, em um papel que devolva sua centralidade. O texto proposto pela sociedade para a Conae 2024 faz jus a esse caminho. O que se espera – do verbo esperançar (FREIRE, 1992) – é que o Congresso Nacional e o Executivo ouçam a sociedade, a comunidade educacional, e as evidências científicas nacionais e internacionais, caminhando também nesta direção.
Autoria: Andressa Pellanda e Helena Rodrigues