Adeus ao trema

31 de janeiro de 2022 - 11:28 # # # #

Fernando Brito - Assessoria de Comunicação - (85) 3101.2017 / 9.9910.3443
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A grande vítima da Reforma Ortográfica é o trema. Nascido, segundo o tabelião das palavras, Antônio Houaiss, por volta de 1858, estaria, portanto, completando agora 164 anos. Isso no Português do Brasil, porque no de Portugal, sua condenação à morte já ocorrera em 1946. Essa coisa de ter um Português de Portugal e um Português do Brasil é um dos motivos para reformar a Língua e acabar essa distância caravelar. Estamos na época online e o Brasil é o passageiro mais beneficiado nesse navegar que é preciso.

É patente a necessidade da Reforma. A língua, no seu aspecto diacrônico, é uma evolução. Ela se reveste de novidades necessárias à evolução dos tempos e acumula outras, aposentando-as. O trema, no entanto, estaria exatamente comemorando agora 164 anos não fora essa guilhotina sobre seu pescoço. Essa morte anunciada foi uma judiação com esse sinal que em toda sua existência apenas promoveu o “u”. Deu voz a essa letra em muitas ocasiões, tirando-a das garras do perigoso hífen.

Cada vez que o trema se deitava sobre o “u”, ele engravidava de som, ficava um “u” emancipado, prenhe de poder na voz. Agora não, o “u” ficou viúvo, com uma vida dupla, ora falando grosso ora falando fino e o trema foi sepultado.

Em toda Reforma Ortográfica, foi o único sinal condenado à total extinção. Até o acento diferencial ainda permanece em, pelo menos, duas palavras: “pôde” e “pôr”. E o pior é que há sinais malandros, como esse tal de ponto e vírgula que nunca se definiu se é ponto ou se é vírgula e sai por aí travestido de hermafrodita, dando dor de cabeça nos escribas. Eu, particularmente, evito contato com esse sujeito, porque em muitas ocasiões não sei qual é a dele, ou qual é a dela. Já encurtei muitas frases para não passar pelo ponto e vírgula. Já fiz atalhos para evitá-lo. Mas não, ele continua vivo, intocável, majestoso e desafiador, agregado à pontuação e à minha ojeriza.

Outra coisinha chata, pentelha, que azucrina escrevinhadores é esse tal de hífen. Parece que a Reforma fê-lo mais feio. Mas está por aí esbanjando saúde na sua arte de separar. Sua triste função é separar, dividir. Parece até que a arte de separar é mais valorizada que a de juntar. O trabalho do hífen tem sido a pregação de divórcios e desquites entre dois termos que se querem casados. Que maldade! Mas ele continua firme e forte na sua sanha destruidora de uniões.

Na mesma linha do hífen e do ponto e vírgula está o dissimulado apóstrofo. Com sua vetusta existência de quase meio milênio, continua impávido e ninguém mexe com ele. Só mexeram em definitivo com o coitado do trema. Mas não seja por isso, vamos venerar sempre esse “cosme-e-damião” condenado mesmo sendo inocente. Já chegam notícias de que, em Minas, uma confraria de preservação da memória do trema está sendo fundada. Dizem que vai ter sede própria e estátua de cera. Há, no entanto, já algumas reações das feministas porque a confraria é só de homens. Só confrades se inscreveram, não há confreiras em seus quadros. É preciso verificar se essa discriminação consta nos estatutos. Mas uma coisa é certa, há alguns membros que defendem a ideia de que o trema é símbolo do macho e que aqueles dois pontinhos arredondados simbolizam os testículos e são testemunhos de sua relação com o “u”, numa cópula necessária para a produção de um som que a sua solteirice no claustro do hífen não permite.

É imperioso que essas incongruências linguísticas sejam extirpadas da língua, não resta dúvida. É preciso, no entanto, cuidado com os critérios. A cedilha, por exemplo, é algo intocável entre nós, quando sabemos que o próprio Espanhol, de onde a importamos, já a extinguiu. Por isso que aquela língua é tida como a mais moderna, hoje falada e escrita. Por que não se retira de vez a cedilha dessa humilhação centenária de ficar debaixo do “c”, com medo do “ss” ou do “k”? A cedilha já foi tão humilhada nessa sua vida subterrânea que não faria questão de ser eliminada de vez. É exatamente uma posição contrária a do trema, que sempre esteve por cima, de forma ativa. A cedilha além de passiva consegue esmaecer a fortaleza do “c”. Enquanto o trema revigora o “u”, a cedilha enfraquece o “c”, mas continua na dela, escondidinha ali por baixo, quebrando cabeça de quem escreve.

Por fim, quero patentear minha tristeza pela execução do trema. Não só pela amizade que sempre cultivamos, mas pela inocência que sempre transmitiu e pelo bem que fazia. Mesmo estando sempre por cima, nunca humilhou ninguém. E, agora, nessa sua partida definitiva, só me resta lacrimoroso lhe pedir perdão e lhe dizer adeus.

# Professor José Batista Lima, conselheiro do CEE, membro da Câmara de Educação Superior e Profissional (CESP)