Educação, Encarnação e Libertação

24 de novembro de 2021 - 13:25 # # # # # # #

Fernando Brito - Assessoria de Comunicação - (85) 3101.2017 / 9.9910.3443
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Ninguém conscientiza ninguém porque a conscientização é um exercício de liberdade e um processo de conquista de autonomia, não é algo que alguém possa fazer por outra pessoa. Conscientizar é conscientizar-se. Dizendo assim, reverencio Paulo Freire, por ocasião do seu aniversário de 100 anos, em 2021, e cortejo a Pedagogia da Libertação, que é atual enquanto existirem oprimidos no mundo e enquanto soar o grito dos excluídos. A compreensão desta pedagogia, em sua dimensão política, implica compreender que a ideia de liberdade só adquire significação quando se articula com a luta concreta dos homens para libertarem-se da opressão. É neste sentido que vislumbro aqui a comunhão da Pedagogia da Libertação com Pedagogia da Encarnação (um conceito em processo de elaboração).

A civilização ocidental, desde a antiga Paideia grega, compreendeu a educação e seu o itinerário formativo como um processo emancipatório e de conquista da autonomia. Nos tempos áureos da filosofia antiga, Sócrates fez valer essa conquista até às últimas consequências; mesmo diante da sua condenação à morte, ele se recusou a fugir, para não negar o que havia ensinado e defendido durante toda a sua vida em Atenas: somente em sociedade, nas relações interpessoais e públicas é que os seres humanos se humanizam; sem isso, não há identidade, não há sentido, não existe futuro; ele exerceu, desse modo, sua autonomia e a sua liberdade até o fim. Platão aponta o diálogo como a única possibilidade de emancipação: dialogar é encontrar o Outro, o mais. Na República, ele diz explicitamente que ser filósofo é ser dialético, isto é, ser capaz de jogar o jogo argumentativo que põe em movimento perguntas e respostas, numa tessitura em aberto, na qual o movimento não cessa e se traduz como uma produção de visão de conjunto, e somente após ter alcançado a visão ampla ele estará pronto para ser pedagogo. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, advoga que são falsos os filósofos que não conseguem articular virtude intelectual com virtude moral (vivencial), isto é, sabem o que fazer, mas são incapazes de por em prática o conhecimento que possuem, talvez, por isso, ele seja reconhecido como um filósofo da práxis. Assim foi lançado o programa filosófico da Educação Ocidental, resumido por Kant, na modernidade, como a conquista da maioridade intelectual.

Paulo Freire encarnou esse programa de educação como produção de autonomia, adotou o diálogo como caminho, mas, para além dessa herança, ele foi adiante e defendeu, nas linhas e entrelinhas da sua obra, que a Educação é um ato político, e que Escola é ambiente de aprendizagem e engajamento, pois nela devemos aprender não apenas a interpretar o mundo, mas transformá-lo; isto é, a liberdade não é apenas um conceito ou mera aspiração humana, mas é, fundamentalmente, uma instauração social e histórica. E, também, não se trata de uma transformação que aponte para um tipo ideal ou romântico de mundo, mas para um mundo no qual a justiça social prevaleça, onde todas as formas de violência sejam combatidas, as diferenças sejam respeitadas e a democracia seja forte o suficiente para garantir que esse mundo seja possível e viável para as futuras gerações. E nós, professores, nunca podemos esquecer que o saber democrático é uma conquista coletiva e jamais se encarna autoritariamente.

O binômio aprendizagem e engajamento é o cerne da Pedagogia da Libertação. Aprendizagem sem engajamento é diletantismo vazio e pode resultar em arrogância e autoritarismo. Engajamento sem aprendizagem pode produzir
obscurantismos vários e perigosos. Esse binômio se traduz em conscientização, por isso, ninguém conscientiza ninguém, pois, trata-se de uma vivência intransferível e inédita, que cada indivíduo tem a sua. Conscientizar-se significa conhecer vivendo, saber fazendo, interpretar transformando. Assim, quem se conscientiza torna a mente corpórea: encarna.

Chamo de Pedagogia da Encarnação a formação que se torna corpo e que anda pelo mundo, pisando no chão, fazendo, sonhando e transformando. A Pedagogia da Encarnação é a consciência profunda da alteridade que toma a minha própria carne e que é a prova incontestável da aprendizagem: porque fica guardado na pele, que é o mais
profundo: no corpo, na carne. E é tão aprendido que fica esquecido e torna-se memória corporal. A Pedagogia da Encarnação é um diálogo ininterrupto porque o outro nunca se deixa dominar e sempre escapa para que o diálogo não acabe nunca. É a consciência de não possuir, de não se tornar dono, mas de pertencer à Inteligência, ao Amor, à
História, à Vida: não é a Inteligência que nos pertence, somos nós que pertencemos a ela; não é o Amor que nos pertence somos nós que pertencemos a ele; não é a História que nos pertence somos nós que pertencemos a ela; não é a Vida que nos pertence, somos nós que pertencemos a ela.

O que nos leva a pensar que aprendizagem na vida escolar é mero processo de tomada de consciência das coisas? Por que é tão difícil compreender que a aprendizagem é, da mesma forma, um processo de encarnação, que exige prática feito práxis? Aprender não é apenas saber de algo ou ter ciência de algo; aprender é, de igual modo, ser capaz de praticar, de agir no mundo e de vivenciar algo. Portanto, não aprendemos apenas observando ou lendo ou ouvindo, mas sim, e necessariamente, exercitando, praticando e experimentando.

O nosso primeiro desafio como professores e Pedagogos da Libertação e da Encarnação é compreender a aprendizagem, ao mesmo tempo, como conscientização e como ação (engajamento). E a consequência disso talvez seja uma grande mudança no nosso modo de estar com os nossos alunos. Nosso tempo com eles precisa abrigar esses dois momentos de aprendizagem: o mental e o corpóreo; precisamos trabalhar a competência e a habilidade, a visão e a escuta, a cognição e a sensibilidade. Precisamos assumir que ensinar é deixar aprender, e aqui a tarefa maior não é fazer pelo outro, mas é deixar que o outro faça por si mesmo, o que exige o encontro do tempo de conhecer e do tempo de realizar.

Para a compreensão da práxis como critério da aprendizagem é preciso assumi-la como categoria central. Pela práxis o ser humano sabe que tem que existir para ser; definindo-se, assim, como tarefa de realização de si mesmo. Como práxis, ser humano é, fundamentalmente, ser no mundo, pois só no mundo, como pessoa corporal e histórica que a humanidade se realiza. A práxis é sempre a transcendência para o outro e o retorno a si dessa transcendência. É uma permanente exigência de realização e de sentido. A práxis é a encarnação do universal numa situação histórica específica. É a passagem do geral para o particular. E cada encarnação é a realização da identidade na diferença, pois se dá no tempo, na história e na linguagem. Práxis é o modo de realização existencial do ser humano: é a realização da liberdade. Daí porque o ser humano experimenta sua vida, antes de tudo, como um dever-ser: o ser humano tem necessidade de obras porque sempre ainda não é, mas precisa ser. Pelas obras ele é sempre liberdade singular, finita, contingente e histórica, na qual se desvela algo incondicional e universal. Como ser da práxis o ser humano é viver em risco. Realizar-se é sua tarefa, do contrário, ele se perde.

A história da efetivação humana como práxis é, assim, um círculo: saída para as obras e retorno a si a partir das obras. Por isso, a reflexão não é um mero ato abstrato, mas, verdadeiramente, um retorno a si a partir das obras. Pela práxis o ser humano é pessoa encarnada, pois as obras só existem na prática e pela prática; deixadas puramente em si mesmas, as obras são apenas coisas. Elas são obras verdadeiramente na medida em que, retornadas à interioridade do sujeito, são introduzidas no evento do ao-mesmo-tempo de subjetividade e objetividade, de exteriorização e regresso (interiorização). Pela práxis podemos compreender que o ser humano só é enquanto está sendo; portanto, somos um convite permanente à encarnação de Nós mesmos. Para sermos livres, precisamos experimentar e acontecer.

# Professor Custódio Almeida – ICA-UFC e conselheiro presidente da Câmara de Educação Superior e Profissional (CESP) do CEE

# Texto produzido para compor uma publicação feita por um grupo de educadores do Brasil e
do exterior, reunidos na Uniprosa, para celebrar o centenário de Paulo Freire.